Leishmaniose visceral canina

1. Da necessidade de atualização e aprofundamento do conhecimento sobre as leishmanioses, em particular a leishmaniose visceral canina

As leishmanioses seguem sendo um problema sério de saúde pública no país. Descobertas a mais de 100 anos e combatidas de fora contínua há quase 50, as várias formas da leishmaniose, ao contrário do esperado, expandiram-se pelo território brasileiro.

O diagnóstico clínico da doença, tanto em humanos como em animais, é um desafio, e a reduzida disponibilidade de opções terapêuticas uma realidade que reflete seu caráter de “doença negligenciada”. O diagnóstico laboratorial progrediu nas duas últimas décadas, sobretudo para a leishmaniose visceral canina: de fato, os veterinários têm-se beneficiado do avanço nessa área mais do que os médicos.

O reduzido conhecimento sobre as leishmanioses entre médicos, veterinários e outros profissionais ligados à saúde, em geral, e à saúde pública em particular, reduz a eficácia das medidas de controle e compromete o diagnóstico e o prognóstico da doença, no homem e nos animais.

O objetivo deste texto é atualizar o leitor sobre a leishmaniose visceral canina no Brasil, com ênfase na epidemiologia e controle da doença.

As leishmanioses são protozoonoses causadas por parasitas intracelulares denominados Leishmania, que fazem parte da família Trypanosomatidae. A doença é endêmica em 98 países e territórios.

Em seres humanos, se apresentam em três diferentes manifestações clínicas, a leishmaniose cutânea, a leishmaniose cutâneo-mucosa e a leishmaniose visceral (calazar). A leishmaniose dérmica pós-calazar (PKDL) é uma complicação da leishmaniose visceral em pacientes que se recuperam da doença. Nas várias regiões do globo, mais de vinte espécies de parasitas estão envolvidas na infecção e são transmitidos por várias espécies de flebotomíneos, insetos de relevância médica e veterinária.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estimam-se entre 700.000 mil a 1 milhão de novos casos humanos por ano, com 26.000 a 65.000 mortes. As leishmanioses estão associadas a mudanças ambientais, desmatamento, construção de barragens, irrigação e urbanização, afetando as populações mais pobres do planeta, malnutridas, com sistema imune comprometido e com falta de recursos financeiros.

3.1. Epidemiologia

A leishmaniose visceral (LV), também conhecida como calazar, é fatal em 95% dos casos não tratados. A epidemiologia é extremamente complexa e depende de variáveis sociais e ambientais, das espécies de Leishmania, do vetor envolvido e do comportamento de reservatórios e hospedeiros (Quadro 1).

Quadro 1. Leishmaniose visceral: espécies, região de ocorrência, vetores, reservatórios e hospedeiros mamíferos.

Espécies Região Vetor Hospedeiro/ Reservatório
Leishmania (L.)
infantum
Velho Mundo:
Europa
Ásia
África
Phlebotomus perniciosus
P. ariasi
Humanos
Cães
Canídeos selvagens
Leishmania (L.)
donovani
Velho Mundo:
Europa
Ásia
África
P. argentipes
P. orientalis
Humanos
Leishmania (L.)
infantum (syn. L. chagasi)
Novo Mundo:
Américas do Sul,
Central e Norte
Lutzomyia longipalpis
Lu. cruzi
Lu. forattinii
Lu. evansi
Humanos
Cães
Canídeos selvagens Felinos
Marsupiais
(Adaptado de PITA-PEREIRA et al., 2008; CARREIRA et al., 2014; AKHOUNDI et al., 2016)

A Organização Mundial da Saúde estima a ocorrência de 50.000 a 90.000 novos casos de LV no mundo. A doença é endêmica em 70 países, mas a maioria dos casos ocorre no Brasil, África Oriental e no Sudeste Asiático. Em 2017, mais de 95% dos novos casos relatados à OMS ocorreram em 10 países: Bangladesh, Brasil, China, Etiópia, Índia, Quênia, Nepal, Somália, Sudão do Sul e Sudão (OMS, 2016) (Figura 1).

Na América Latina, a LV ocorre em 12 países, com 90% dos casos concentrados no Brasil (BRASIL, 2014), distribuídos em todos os estados das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, além dos estados de Roraima, Tocantins e Pará, na região Norte. (LAINSON & RANGEL, 2005). O cão é o principal reservato1rio da doença e o conhecimento da prevalência da enfermidade no reservatório canino é determinante de medidas preventivas em saúde pública. Entre as cidades e estados brasileiros, a variação na prevalência de leishmaniose visceral canina (LVC) é muito grande, variando de 0,7% em Salvador, no estado da Bahia (BARBOZA et al., 2009), a 51,6% na ilha de São Luís, Maranhão, (SILVA-ABREU et , 2008), ambos no Nordeste, onde a doença é mais prevalente.

Figura 1. Distribuição mundial da leishmaniose visceral humana, 2016 (Adaptado de WHO, 2019
Figura 1. Distribuição mundial da leishmaniose visceral humana, 2016 (Adaptado de WHO, 2019

A prevalência de LV humana causada por L. infantum diminuiu onde os padrões de vida melhoraram (OMS, 2016), mostrando que uma das intervenções mais importantes pode ser o desenvolvimento socioeconômico e a melhoria da nutrição das crianças (READY, 2014), mas os casos de LVC por vezes aumentaram, indicando determinantes epidemiológicos parcialmente distintos entre a doença humana e a canina.

A urbanização da LVC se correlaciona com o aumento da mobilidade global (OMS, 2002) associada a fatores demográficos e ecológicos. Na América Latina, especialmente no Brasil, Colômbia e Venezuela, a migração e a urbanização contribuíram para o aumento da LV americana. No Brasil, um exemplo é o êxodo rural dos campos nordestinos, fazendo com que milhares de pessoas migrem para cidades como Fortaleza, Jacobina, João Pessoa, Natal, Petrolina, São Luís, Sobral, Teresina e Salvador. Eles passam a viver em áreas suburbanas com condições insalubres e desnutrição. Os migrantes geralmente trazem seus cães e criam galinhas e porcos em suas casas, todos servindo como fonte de alimentação para o vetor. Segundo Moreno et al. (2005), em áreas urbanas, alguns fatores favorecem a disseminação de L. infantum, como presença de resíduos e áreas degradadas em torno das casas, falta de reconhecimento de vetores pelos locais e maior exposição a flebotomíneos, principalmente no início da noite. Assim, a "ruralização" dos arredores das cidades nordestinas tem sido identificada como a causa de epidemias detectadas na região, embora esse mesmo processo possa não ser necessário para a entrada de leishmaniose visceral em outras cidades, como aconteceu no sudeste do país.

Não há consenso entre os fatores de risco predisponentes à infecção no cão no Brasil e em outros países. Entre eles, pode-se citar: idade, pelo curto, raça pura, moradia em área rural ou próximo a áreas verdes e presença de galinhas no ambiente peridoméstico.

Um fato que tem chamado a atenção são os vários relatos da infecção em gatos provenientes de áreas endêmicas no Brasil e no exterior. No Brasil, a porcentagem de gatos soropositivos varia de 4,06% a 54%, dependendo do estudo. O diagnóstico é realizado por sorologia (imunofluorescência indireta), reação em cadeia da polimerase (PCR) e citológico. As taxas mais altas são obtidas quando se utiliza o diagnóstico sorológico. Os casos foram encontrados na região Norte (Belém do Pará), Nordeste (São Luiz/MA, Mossoró/RN), Centro Oeste (Campo Grande/MS) e Sudeste (Belo Horizonte/MG, Pirassununga e Ilha Solteira/SP). Em Belo Horizonte, felídeos e canídeos em cativeiro também foram reagentes na sorologia. Entretanto, os estudos realizados ainda são insuficientes para determinar a participação de gatos e outros felídeos na epidemiologia da leishmaniose visceral.

3.2. Ciclo biológico

O ciclo de vida da L. infantum é heteroxênico, ou seja, o parasita se desenvolve em dois tipos de hospedeiros. No hospedeiro intermediário, o vetor, a forma promastigota se desenvolve no intestino do inseto; no hospedeiro definitivo, o amastigota se desenvolve como um parasita intracelular obrigatório em macrófagos. Durante o repasto sanguíneo, os vetores ingerem macrófagos contendo amastigota de Leishmania, que depois se multiplicam por divisão binária e se diferenciam em promastigotas. Os promastigotas se ligam ao epitélio do esôfago ou faringe do flebótomo pelo flagelo e depois se diferenciam em promastigotas metacíclicos, que é o estágio infeccioso, incapaz de se dividir ou se ligar ao intestino médio, permanecendo livre no lúmen do trato digestivo.

A transmissão ocorre quando o vetor infectado realiza um novo repasto e inocula a forma infecciosa de Leishmania no hospedeiro. O flebotomíneo regurgita cerca de 1000 metacíclicos na ferida causada na pele do mamífero. Quando inoculado no organismo hospedeiro, o parasita é fagocitado pelas células do sistema fagocítico mononuclear e perde os flagelos. Em seguida, ele se multiplica intensivamente por divisão binária, a ponto de romper a célula hospedeira e liberar amastigotas, que serão fagocitados por outras células e se espalharão via sangue e linfa para outros tecidos e órgãos.

3.3. Vetor

Os vetores da LV pertencem à ordem Diptera, família Psychodidae, subfamília Phlebotominae, gênero Lutzomyia no novo mundo e Phlebotomus no Velho Mundo. Eles podem ser encontrados em regiões tropicais e subtropicais e, no Brasil, são popularmente conhecidos como mosquito palha, birigui, cangalhinha, entre outros. Os flebotomíneos são insetos pequenos de cor marrom clara, com uma camada de pelos sobre o corpo. Eles medem entre 2-3 mm. Seu alcance de voo atinge até 300 m, mas pode ser maior dependendo da espécie. Eles geralmente voam em pequenos saltos e têm atividade crepuscular e noturna.

A hematofagia é um hábito único das fêmeas, que necessitam de sangue para a maturação dos ovários, portanto são capazes de transmitir a doença. Uma grande variedade de animais foi identificada como hospedeira na dieta de flebotomíneos, que têm hábitos alimentares ecléticos. As fêmeas depositam ovos em solo úmido, rico em matéria orgânica.

3.4. Transmissão

A LV causada pela L. infantum é uma zoonose e pode exibir ciclos de transmissão selvagens ou domésticos, dependendo das condições eco-epidemiológicas. A leishmaniose pode começar no ciclo selvagem, envolvendo reservatórios como canídeos selvagens e marsupiais. Quanto ao ciclo doméstico, muito mais comum, o principal reservatório é o cão doméstico (Canis lupus familiaris). A ligação entre ciclos selvagens e domésticos ocorre quando os seres humanos instalam habitações nas margens das florestas e, provavelmente, porque alguns reservatórios selvagens têm hábitos sinantrópicos.

A leishmaniose visceral canina (LVC) é crucial do ponto de vista epidemiológico, pois é muito mais prevalente que a LV humana. Os cães exibem altos níveis de parasitas cutâneos e alta sensibilidade à infecção vetorial. Além disso, entre 50 e 60% dos animais infectados são assintomáticos. Estima-se que três em cada cinco cães positivos assintomáticos transmitam o parasita a flebotomíneos, e essa taxa de transmissão não muda significativamente entre os grupos sintomáticos e assintomáticos de animais.

Outros animais têm sido apontados como possíveis reservatórios, como roedores e gatos, ou hospedeiros acidentais, como cavalos. A adaptação de vetores a diferentes espécies animais seria um fator favorável à transmissão de LV. Existem outras formas de transmissão de menor importância epidemiológica, como transfusão de sangue e transmissão venérea, além da transmissão vertical, que pode ser transplacentária ou transmamária. A transmissão direta entre cães através de mordidas ou feridas tem sido sugerida como responsável pela transmissão esporádica da leishmaniose visceral canina.

3.5. Imunologia

Os componentes do sistema imunológico agem de maneira complexa e coordenada para impedir a entrada e a sobrevivência de agentes estranhos no corpo. Na leishmaniose visceral, o resultado da relação entre parasita e hospedeiro é determinado por fatores complexos que envolvem componentes salivares do inseto vetor, proteínas de superfície secretadas pelo parasita e diferentes respostas produzidas pelo hospedeiro, entre outros. A leishmaniose pode ser considerada uma doença imunomediada, considerando a capacidade do parasita de alterar o sistema imunológico. Em última análise, promove a inibição da resposta imune, estimulando o desenvolvimento de células T reguladoras ou exercendo algum grau de controle sobre o sistema complemento. Neste último caso, as propriedades de opsonina do complemento facilitam a adesão às células fagocíticas e impedem sua efeitos líticos através da ação da glicoproteína gp63 expressa na superfície do parasita. Assim, o resultado da infecção depende da capacidade do parasita de desenvolver mecanismos de evasão para escapar das respostas do hospedeiro e permanecer ileso no citoplasma das células fagocíticas.

A resistência à infecção por L. infantum em cães é caracterizada pela ausência de sinais clínicos, baixos níveis de anticorpos anti-Leishmania, resposta proliferativa de linfócitos in vitro e resposta tardia de hipersensibilidade a antígenos da pele. A progressão da infecção, no entanto, refere-se a resposta humoral exagerada e depressão imune celular, provocando o aparecimento de sinais clínicos. Animais assintomáticos também exibem menor parasitismo, enquanto os sintomáticos geralmente carregam alta carga parasitária em diferentes tecidos, como pele, medula óssea, baço, fígado e linfonodo.

As células apresentadoras de antígeno apresentam antígenos de Leishmania spp. às células T CD4 + via MHC classe II e, como o agente é um parasita intracelular, pode haver apresentação via MHC classe I com ativação de células T CD8 +. As células CD8 + constituem uma população significativa na imunidade celular contra a leishmaniose visceral canina (LVC), superando em número as células CD4 + na derme. Elas desempenham um papel importante na resistência à infecção. Foi observado que a alta frequência de linfócitos circulantes CD8 + está diretamente relacionada ao baixo parasitismo esplênico no cão e que há uma correlação negativa entre as células T CD8 + com a densidade do parasita na pele, indicando que esse tipo de célula está relacionado à resistência à LVC.

Embora a relação entre um padrão de resposta humoral anti-Leishmania e resistência ou suscetibilidade à LV não seja bem definida, o perfil de imunoglobulina pode aparecer como um biomarcador para o monitoramento do prognóstico clínico e da densidade parasitária tecidual, pois está associado à progressão dos sinais clínicos e aumento de parasitas nos órgãos linfoides. Foi relatado aumento nos níveis de IgG1 associados à apresentação clínica assintomática e baixa carga parasitária do tecido, enquanto a forma clínica sintomática seria caracterizada por alta carga parasitária e altos níveis de anti-Leishmania IgG, IgG2, IgM, IgA e IgE. Resultados semelhantes, com cães sintomáticos demonstraram altos níveis de anticorpos anti-Leishmania IgG2, enquanto os assintomáticos apresentaram títulos mais altos de IgG1, quando comparados com IgG2. A produção de IFN-γ está associada à produção de IgG1, o que pode indicar um perfil de resposta Th1 nos cães assintomáticos.

3.6. Sinais clínicos e sintomas

A Leishmaniose Visceral Canina apresenta um quadro clínico que varia desde animais completamente assintomáticos até os casos sintomáticos clássicos. Animais infectados sem sinais clínicos compreendem alarmantes 40-80% de todos os casos: Embora os cães assintomáticos sejam uma importante fonte de infecção para os flebótomos, os proprietários resistem geralmente à eliminação de seus animais.

No início da infecção os sinais da doença no cão podem ser bastante discretos e facilmente confundidos com outras doenças. Os animais podem apresentar lesões discretas na borda das orelhas e pequenas alterações no perfil sanguíneo (anemia leve e / ou trombocitopenia). A leishmaniose clínica pode aparecer rapidamente após a infecção ou por volta de dois anos. O calazar canino clássico é caracterizado por pele espessada, lesões cutâneas, febre intermitente, alteração da aparência do pelo ou perda parcial de pelo, alopecia periorbital, hepatoesplenomegalia, acinesia, diarreia, onicogrifose (crescimento das unhas) e sangramento nasal. Paralisia parcial dos quartos traseiros é frequentemente vista no estágio final da doença.

O sangramento nasal (epistaxe) ocorre devido a trombocitopenia e é causa frequente de erro diagnóstico, ao se atribuí-lo à erliquiose, uma doença bacteriana transmitida por carrapatos, e que em muitos casos pode estar associada à leishmaniose. Em áreas endêmicas, é aconselhável que qualquer diagnóstico de Ehrlichia ou Anaplasma em cães seja acompanhado por um diagnóstico diferencial de calazar.

3.7. Tratamento

O tratamento de cães soropositivos para a Leishmaniose Visceral Canina (LVC) é uma prática controversa no Brasil e, acima de tudo, não é recomendada pela Organização Mundial da Saúde, principalmente porque não diminui a importância do cão como reservatório e usa medicamentos utilizados em seres humanos no tratamento da leishmaniose visceral (LV), podendo levar ao surgimento de parasitas resistentes. No entanto, os países europeus já estabeleceram legalmente o tratamento.

O uso frequente desses medicamentos em clínicas veterinárias pode selecionar parasitas resistentes devido à variação na sensibilidade das espécies de Leishmania, além de proporcionar baixo efeito parasiticida, interferindo negativamente no tratamento humano. A falta de sucesso na cura parasitológica ocorre principalmente por ser um parasita intracelular e localizado em tecidos menos vascularizados, como o corpo vítreo, onde pode ser difícil obter doses terapêuticas. Apesar das diversas pesquisas sobre a eficácia de diferentes classes de medicamentos para o tratamento da infecção em cães, nenhum grande progresso foi feito em relação à toxicidade ou cura parasitológica, destacando a necessidade de avaliação de novas formulações e medicamentos a serem utilizados exclusivamente no tratamento de LVC.

No Brasil, a partir da publicação da NOTA TÉCNICA Nº 11/2016/CPV/DFIP/SDA/GM/MAPA, foi autorizado o tratamento de cães com LV com a miltefosina, uma vez que esta droga não é utilizada para tratamento da leishmaniose visceral em humanos. Entretanto, a nota deixa claro que não se configura como uma medida de saúde pública para controle da doença e, portanto, trata-se única e exclusivamente de uma escolha do proprietário do animal, de caráter individual.

3.8. Imunização

Uma vacina eficaz deve induzir uma resposta Th1 forte e duradoura para impedir o estabelecimento inicial da infecção: por definição, uma vacina profilática. No entanto, quando se trata de uma doença causada por um protozoário intracelular obrigatório, o objetivo é pelo menos controlar a progressão para doença grave e impedir a transmissão do hospedeiro para o vetor, dificultando a manutenção do ciclo epidemiológico.

Até agora, as vacinas formuladas para LVC incluem parasitas mortos, componentes de proteínas ou subunidades de parasitas, frações celulares purificadas, proteínas recombinantes salivares de vetores, partículas virais que codificam os fatores de virulência do parasita e DNA plasmidial.

A Leishmune® (Zoetis Animal Health) foi a primeira vacina aprovada para uso comercial no Brasil, em 2003. No entanto, em 2014, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) interrompeu as licenças de fabricação e comercialização devido a problemas na fase III. A vacina é composta por um antígeno glicoproteico, o ligante da fucose-manose recombinante, capaz de estimular uma boa resposta imune celular, diminuindo a IL-4 e ativando células T CD4 + a produzirem TNF-α e IFN-γ, citocinas importantes na resistência.

A Leish-Tec® (Ceva), composta pela proteína A2 recombinante associada ao adjuvante saponina QuilA, continua sendo comercializada no Brasil desde 2008, quando foi registrada pelo MAPA. Foi demonstrado que oferece proteção parcial contra L. infantum em cães Beagle, produzindo boas respostas imunológicas humoral e celular, altos níveis de IgG e IgG2 anti-proteína A2 e IFN-γ.

Apesar do crescente progresso na produção de vacinas contra a LVC no Brasil e no mundo, há muito a ser melhorado em relação à indução de resposta imune celular e humoral durável e eficiente. Além disso, novas vacinas acessíveis devem ser produzidas para a população, uma vez que as disponíveis no mercado até agora são caras e inviáveis ​​para uso em saúde pública.

3.9. Diagnóstico

O diagnóstico clínico da LVC é desafiador, pois os sinais geralmente não são específicos para a doença; ensaios de laboratório são, portanto, de suma importância. Além disso, como o cão é considerado o principal reservatório doméstico no Brasil, ensaios sorológicos constituem a base para identificar cães infectados e direcionar ações de saúde pública visando o controle da doença.

De acordo com a recomendação do Ministério da Saúde, os soros coletados em cães em levantamentos soroepidemiológicos, como parte do Programa de Controle da Leishmaniose Visceral, são primeiramente selecionados com o teste imuno-cromatográfico rápido (conhecido como DPP - Dual Path Platform) constituído do antígeno recombinante rK28 (rK9 + rK39 + rK26). Apenas as amostras positivas são testadas novamente nos laboratórios de referência estaduais com o ensaio ELISA oficial (EIE – Leishmaniose Visceral Canina Biomanguinhos) contendo antígeno total de promastigotas de Leishmania. A abordagem, sem dúvida, acelera a triagem, mas devido à baixa sensibilidade da DPP nos casos de soro de cães assintomáticos, permite que um conjunto considerável de cães infectados possivelmente permaneça nas áreas endêmicas, comprometendo a eficácia das ações de controle.

Laboratórios privados costumam confiar em um único resultado obtido com o uso de um kit ELISA recombinante comercial (ELISA/S7), cujo antígeno é a HSP70 (Proteína de Choque Térmico) recombinante, registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil para o diagnóstico de CVL. Mais recentemente, começaram a ser utilizados alguns testes imunocromatográficos rápidos, como o teste Alere (SOUZA FILHO et al., 2016), mas altos custos impedem sua adoção no diagnóstico de rotina. Um ELISA recombinante baseado em K39, desenvolvido e empregado fora do país apenas para uso em pesquisa (http://www.inbios.com/kalazar-detect-elisa-system-for-visceral-leishmaniasis-intl/), também segue em uso no diagnóstico comercial rotineiro de LVC no Brasil.

O ensaio ELISA oficial e o ELISA/S7 têm índices de sensibilidade e especificidade semelhantes e apresentam um desempenho igualmente bom na identificação de cães soropositivos e supostamente infectados. Eles também não apresentam taxas significativas de reações positivas em casos de cães vacinados. Outros ensaios sorológicos, p.ex., a aglutinação direta - DAT, não são facilmente disponíveis no Brasil e por isso não são adotados em laboratórios públicos ou privados. Como os ensaios ELISA recombinantes existentes têm alta sensibilidade e especificidade, mesmo no sorodiagnóstico em cães assintomáticos, pode-se argumentar contra a necessidade de novos exames laboratoriais. No entanto, as reivindicações de reações cruzadas com babesiose, erliquiose e outras doenças infecciosas caninas comuns continuam provocando insatisfação e colaborando para uma associação destes a outros testes sorológico como o RIFI (Reação de Imunofluorescencia Indireta).

Devido ao custo e necessidade de uma mão-de-obra mais especializada, os ensaios de PCR raramente são usados ​​e têm aplicação limitada para o diagnóstico de rotina.

Em conclusão, nenhuma descoberta de diagnóstico foi descrita e nenhuma tecnologia inovadora foi introduzida nos últimos anos e não há evidências de que esse cenário seja alterado no futuro próximo.

3.10. Medidas de vigilância epidemiológica, preventivas e de controle

As atividades de controle da leishmaniose visceral concentram-se na redução da morbimortalidade através do diagnóstico e tratamento precoces de casos humanos, monitoramento e eutanásia de cães soropositivos e controle populacional de flebótomos, com controle químico, por meio de vigilância entomológica. Além disso, incluem atividades de educação e saúde que envolvem ações conjuntas com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população, como saneamento básico e descarte adequado de lixo.

No Brasil, o Programa de Controle da Leishmaniose Visceral (PCLV) recomenda vigilância, medidas preventivas e controle da leishmaniose visceral humana e canina. A vigilância epidemiológica visa reduzir as taxas de mortalidade e morbidade por meio do diagnóstico e tratamento precoces de casos humanos e reduzir o risco de transmissão através do controle de reservatórios e populações de vetores. A vigilância entomológica visa também reunir informações quantitativas e qualitativas sobre vetores (L. longipalpis e / ou L. cruzi). Essa é uma tarefa das Secretarias de Saúde estaduais e / ou municipais, que devem trabalhar de forma integrada para otimizar os recursos e a eficácia das atividades de inseto. As medidas estabelecidas em nível nacional para a vigilância epidemiológica da LV, enfatizando a população canina, é descrito nos parágrafos seguintes.

Através da análise epidemiológica da LV no estado ou município, as áreas de transmissão são classificadas em áreas com casos de LV ou áreas silenciosas (sem casos). Áreas silenciosas ou áreas sem casos são classificadas como vulneráveis ​​(receptivas e não receptivas) ou não vulneráveis. As áreas com casos são aquelas com registro de um primeiro caso confirmado, aquelas com transmissão esporádica, moderada e intensa e as que estão passando por surtos. De acordo com a classificação da área, são determinadas as ações nos municípios.

No caso dos cães, a vigilância concentra-se em casos suspeitos de caninos (animais sintomáticos em áreas endêmicas ou de surtos) e confirmados por: a) critérios laboratoriais: sintomáticos e positivos em testes sorológicos e / ou parasitológicos; b) critérios clínicos e epidemiológicos: sintomáticos de áreas endêmicas ou de surtos sem confirmação diagnóstica e c) cães infectados: assintomáticos e positivos em testes sorológicos e / ou parasitológicos. Quando um caso canino é identificado, a delimitação da área a ser investigada está entre as ações de vigilância a serem tomadas. Nessas áreas, a pesquisa ativa de cães sintomáticos deve ser realizada para exame parasitológico e, se o agente for encontrado, deve ser realizado um levantamento sorológico de todos os animais da área para avaliar a prevalência local e implementar medidas apropriadas.

As pesquisas setoriais e de recenseamento devem ser realizadas como atividade de monitoramento. O inquérito sorológico amostral em cães deve ser realizado em municípios silenciosos e receptivos com L. longipalpis e naqueles com transmissão moderada e intensa. O inquérito sorológico censitário deve ser realizado em áreas urbanas de municípios silenciosos e receptivos com população canina menor que 500 animais, em áreas urbanas de transmissão moderada ou intensa e áreas rurais em qualquer situação de transmissão. O objetivo é controlar a doença através da identificação de cães infectados, a fim de realizar a eutanásia e avaliar a prevalência. Deve ser realizado anualmente, por pelo menos três anos consecutivos, mesmo sem notificação de novos casos humanos confirmados.

As medidas preventivas em relação à população canina são: a) controle da população canina errante; b) doação de cães após realização de testes sorológicos negativos; c) vacinação contra LVC; d) uso de tela de malha fina em canis individuais ou coletivos e e) uso de colares impregnados com deltametrina a 4%, entretanto, as três últimas medidas ficam restritas aos tutores com alto poder aquisitivo.

As medidas de controle do reservatório canino consistem na eutanásia de cães soropositivos e / ou positivos em testes parasitológicos, além do descarte dos corpos de acordo com o disposto na Resolução RDC nº 33, de 25 de fevereiro de 2003, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

No Brasil, desde 2000, como parte do processo de descentralização da Fundação Nacional de Saúde, os estados, o Distrito Federal e os municípios passaram a ser responsáveis ​​pelas atividades operacionais de assistência, epidemiologia e controle de doenças, e receberam quase todos os bens móveis alocados em todas as unidades federais e mais de 26.000 servidores e recursos para manutenção das responsabilidades transferidas. No entanto, apesar da descentralização e das recomendações do VLCP, as ações tomadas em relação aos reservatórios caninos foram restritas principalmente a áreas de ocorrência de casos humanos, ou seja, após a confirmação de um caso humano, o exame sorológico canino segue na área circundante e, posteriormente, a eutanásia de animais encontrados soropositivo nos exames de triagem (DPP®) e confirmatório (EIE-Biomanguinhos).

Vários fatores dificultam o cumprimento das atividades impostas pelo PCLV. Alguns deles são a intermitência no financiamento federal, pessoal insuficiente para realizar das atividades relacionadas ao controle da LV, priorização para o controle de outras doenças endêmicas como dengue, zika e chikungunya, expansão de áreas de transmissão e interferência de veterinários, donos de animais e organizações não-governamentais (ONGs) relacionadas à eutanásia de reservatórios, pois esse procedimento gera controvérsias quanto à eficácia de seu controle, embora recomendado no Brasil.

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